quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Plástica

Ontem disseram-me que eu era bonito e eu acreditei porque dava muito trabalho dizer o contrário. Além de que, ao dizer o contrário, poderia obrigar quem o afirmou a realçar-me a fealdade. Então resolvi simplificar as coisas e aceitar o elogio como se de uma verdade absoluta se tratasse. E depois fiquei bonito com aquela plástica na auto-estima… e fiquei tão bonito, tão belo e benemérito que decidi retribuir… e disse a quem me disse que quem me disse também o era… e quem me disse ficou tão contente que me fez desconfiar.
Será que quem me disse disse-me o que me disse para eu lhe dizer a seguir? E fiquei logo mais feio, entortou-se-me o nariz, tornou-se mais amarelo o branco dos olhos… e até um dente que tenho nos fundos amareleceu com a ausência de siso e ficou podre… e eu também.
Então encostei quem me disse contra a parede, literalmente, mas como era um muro reformulo a expressão: e encostei-o contra o muro, literalmente. E quem me disse disse que sim, que era a melhor maneira, que não teríamos que ir a uma clínica.
E foi então que percebi. E passámos três meses a dizermos da beleza um do outro e, no fim, estávamos tão belos, tão cheios, tão redondos com aquela silicone emocional e com a cabeça tão leve que começámos a voar. E demos quatro ou cinco voltas ao mundo sem outros motivos de conversa a não ser de dizermos um ao outro e outro ao um que éramos mesmo muito bonitos.
Mas as pessoas lá de baixo, as pessoas pequeninas, porque eram pessoas de ver ao longe e porque eram pequeninas começaram a lembrar-nos das imperfeições com megafones pendurados nos arranha-céus, como quem lhes lava os vidros mesmo quando não se distinguem da transparência do ar.
E esses lavadores de vidros anões fizeram pairar o nosso voo, e em seguida parar o nosso voo, e agora estávamos feios e a cair de encontro ao chão, e íamos mesmo para morrer mas, de repente, um de nós lembra-se e diz ao outro:
­- Tu tens um bom coração.
E o que ouviu não entendeu como uma análise clínica, mas como uma constatação da bondade de quem voa ao nosso lado. E o de bom coração respondeu:
- Tu tens bom aspecto.
Mas não chegou porque o aspecto nunca chega, às vezes pode parecer que chega mas nunca chega.
E o do bom coração voou de novo e deu mais catorze voltas ao mundo antes de morrer de velho. E o do bom aspecto morreu mesmo ali, quando lhe disseram que o tinha, parou-lhe o coração com o susto porque não era bom.

poema do livro "luto lento" de João Negreiros

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