domingo, 6 de julho de 2014

O que a humanidade precisa

Na luta diária de me compreender faço grandes esforços para não me levar a mal a crueldade de me achar pior que o resto da população mundial           que é uma horda de imbecis

que ainda assim          de uma forma ou outra            são melhores que eu       muito melhores que eu

até eu que sou eu          sou melhor que eu
por isso é fácil perceber a peçonha que a minha identidade encerra
eu sou o pior ser           o que quase não foi
devia competir com outras espécies numa prova físico-atlético-emocional             para ser humilhado por uma barata      uma tainha      uma amiba

sim          porque até um ser unicelular tem uma célula melhor que qualquer uma das minhas
que sou a vergonha da cara de todos os mal encarados           os que se envergonham por minha causa

e quando cantam sozinhos à noite porque o rádio avariou é por minha causa
e  quando a mãe lhes nega o leite porque secou junto com as lágrimas é por minha causa
e quando não podem falar porque deixaram que alguém dissesse que não tinham voz é por minha causa

e quando se espancam                       para depois se arrependerem                        e se espancarem de novo           e se arrependerem de novo          e se espancarem de novo        e se arrependerem de novo         e se espancarem de velho              e se arrependerem de velho          e espancarem um morto        e por aí fora
é por minha causa
é por minha causa
quando lhe falta causa é por minha causa
e se lhes pergunto porquê só sabem duas respostas
porque sim           e matam-me a sangue frio
e porque não            e matam-me a sangue frio
que as injecções letais ficam para quem se porta bem e não faz perguntas
mas eu pergunto
pergunto apesar de saber
mas quero ouvir-lhes a voz
quero conhecer a cara do meu assassino antes de morrer
como o cego que apalpa o rosto de um mudo para o poder ouvir
quero beijar-lhe a boca e dizer que o amo          para que algum do fel adoce
talvez lhe lembre um namorado antigo que se vestiu de espanhola pelo Carnaval
talvez lhe lembre a casa dos avós
os pombos na praça
talvez o quebre um pouco
talvez o afrouxe
o que a humanidade precisa é disso          é de afrouxar um pouco
e acima de tudo           de me tratar melhor
de me ajudar a atravessar a rua
de me dar canja quando estou doente
e de me deixar fazê-la quando estiver bom
o que todas as pessoas necessitam urgentemente é de me tratar com carinho
e como eu sou qualquer um de vocês
como eu sou o homem           a mulher           a criança          e o velho

todos nós        e todos vocês              vamos ser            felizes

poema do livro "o cheiro da sombra das flores" de João Negreiros


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