segunda-feira, 21 de julho de 2014

o antes da primeira luz

adoro esta hora
quando a noite perde a virgindade e os bêbados começam a arrepender-se das primeiras juras do escuro

adoro esta hora em que os ratos voltam para casa          e as pessoas também
adoro esta hora em que o desconforto traz a beleza do incómodo que nos acorda a todos os que estivemos acordados

adoro as pegadas dos homens do lixo que levaram as dúvidas que havia sobre a podridão que emprestou a alma à cidade

adoro que esta gente se esqueça quem é e que pergunte que horas são com olhos de quem não quer saber porque as ideias se foram com a noite          e as novas só com a manhã

adoro os padeiros que sabem ao pão
adoro a esperança de um dia novo quando alguém se esvai em sangue na viela que fica bem para além do esquecimento

adoro o limbo onde estão os carapins dos recém-nascidos
que é onde nós guardamos as culpas que queremos ver clareadas
maquilhadas de inocência como a nossa senhora que viu tudo na boite night and day e que não vai contar nada a ninguém

adoro o rio que anda mais devagar
adoro o mar que desagua ligeiramente mais gentil
adoro os cães acabrunhados entre o uivo e o suspiro
e os funcionários do matadouro que sonham com o último grito
adoro as paixões e os comércios que correm mal
adoro as peixeiras que limpam lágrimas ao avental das escamas
adoro os meninos que estão de férias e que se viram para o outro lado para não verem o pai levantar-se do outro lado da mãe


adoro o Sol por ainda não ser e a terra por ainda estar cá

Poema do livro "a verdade dói e pode estar errada" de João Negreiros

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